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JÓ – I – HISTÓRIA DE VENTURAS E DESVENTURAS

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junio 14, 2020 by Bortolato

Introdução

Como entendermos a razão dos sofrimentos que vemos passarem sobre a face da Terra?

Os pensamentos dos homens desenvolvem várias teorias, que reputamos por meras especulações, porquanto só pode tecer comentários de peso consistente quem já passou por longos períodos de tribulações na vida. O resto é só filosofia.

O que é a dor? Podemos tentar defini-la, dizendo que se trata de uma sensação incômoda, inconveniente, que nos tira do normal, abate-nos, deixa-nos sem energias necessárias para vivermos o nosso dia a dia. Esta poderia ser a dor física. A dor moral, porém, já traz outra sensação, que abate o nosso espírito, roubando-nos a alegria, fazendo-nos insatisfeitos por dentro, com amargura, ou raiva, ou reações da espécie.

E quanto doem essas dores, tanto a física, como a moral? Não temos instrumentos de mensuração que nos transmitam com exatidão a intensidade de cada dor. Somente a pessoa afetada é que pode quantificar essa medida, ainda que de forma imprecisa, mas enfim, saber de fato o tamanho de sua dor.

E qual a razão de cada dor? As filosofias apontam para vários lados, como que em um ponto de entroncamento de uma estrada, que apresenta diversos caminhos indo a diversas direções. Cada pensador imagina os caminhos que teriam dado origem às dores.

Para que servem as dores? Esta é outra questão cheia de palpites e lucubrações. Uns dizem que é para purificação da alma. Outros falam que são para nos tornar mais fortes e experientes. Outros dizem que as dores levam as pessoas a ser mais humildes. Outros ainda dizem que são para nos tornar mais sensíveis ao sofrimento dos nossos semelhantes. Outros se referem às dores como instrumento divino de disciplina.

Pode ser que em algum caso, alguma dessas teorias se aplique, mas não podemos generalizar, e julgar o todo pela parte, o conjunto inteiro por casos individuais. Isto não seria justo e nem científico; seria sim, uma precipitação que pode nos levar a conclusões erradas.

O livro de Jó traz uma explicação que não estava sendo cogitada por nenhum dos seus cinco personagens, da figura principal e seus quatro amigos. Para ilustrá-la, apresentamos uma comparação.

Quando caçadores se põem à caça de patos, gansos ou outras aves selvagens que fazem arribação, ao verem um bando dessas voando sobre suas cabeças, são disparados vários tiros de carabina. As aves mais visadas pelos atiradores são aquelas maiores, mais gordas e vistosas, pois que dão mais carne, e são mais fáceis de serem atingidas, garantindo o sucesso de uma boa caçada.

Se depois de alguns tiros veem-se cair ao chão dois deles, e digamos que um já despenca morto, e o outro, tendo sido apenas ferido, é atrás deste que os seus caçadores sairão correndo em disparada, para não perdê-lo de vista. Quanto ao morto, não há o que se preocupar, pois este não mais lhes escapará.

Assim encaixamos esta ilustração dentro da perspectiva do livro de Jó. Os mortos não podem mais reclamar, mas os que sofrem ainda em vida, estes se debatem e lutam por si, pois o instinto de sobrevivência lhes impulsiona a isto. E enquanto isso, os que fazem o possível e o impossível para continuarem vivendo, se houver outros sobreviventes os acompanhando, gritam-lhe desesperados: – “não faça isto, e nem aquilo!” – “Olhe ali o perigo!” “Corra! Não descanse! Nem pense em parar de correr! Você vacilou! Facilitou o trabalho dos seus inimimgos! Olhe aí o resultado do que você fez! Agora está colhendo o que plantou!” – quando as forças do pobre ferido não lhe permitem mais condições para continuar a correr, e a palavra dos companheiros não lhe servem senão para atormentá-lo mais ainda, servem apenas para imputar-lhe a culpa pela desgraça…

De quem é a culpa por ter o infeliz sido alvejado quando viajava descuidado neste mundo? Há quem diga ainda hoje que é do próprio ferido… Será?

O fato é que quem conhece as dificuldades de uma ave ferida são somente as aves feridas, não importa o quanto estas sejam culpadas por… voar!

Feridos dizem: – “dói aqui e ali” hoje, e em outras partes do seu corpo nos dias seguintes. E ninguém sabe como serão os seus dias futuros, quando tiver que enfrentar “o dia seguinte”. Quem lhes poderá curar as feridas, para sararem?

Assim contemplamos o quadro que se nos apresenta no Livro de Jó.

Quem foi esse Jó? Existiu de fato um nome tão curto, de apenas duas letras?

Esse nome foi escrito em hebraico, quando de sua inserção no Cânon Sagrado, mas bem pode ter sido escrito em outra língua, talvez no aramaico antigo.

Em hebraico, pode ter o significado de “retorno”, ou “odiado”. A forma original deste nome sugere (Yyab) “um órfão” – literalmente: “onde está meu pai”. Além do personagem em foco neste livro, os textos da Bíblia revelam somente um dos filhos de Issacar, o terceiro deles, que teria sido assim denominado (Números 26:24 e I Crônicas 7:1), também chamado de Jesube, mas temos por certo que este não era o personagem principal do livro de Jó.

Fora das Escrituras, textos de Execração, que hoje são guardados em Berlim, referem-se a um príncipe que governou a área de Damasco no IXº século A.C. Um outro homem que também recebeu esse nome é mencionado nas cartas de Tel-el-Amarna, em cerca de 1.400 A.C., o qual teria sido um príncipe de Edom.

De qualquer maneira, não se trata de uma figura fictícia, criada pelo escritor do livro para publicar seus poemas. O prólogo e o epílogo são claros em lidar com o caso real de Jó como um importante e rico homem do Oriente.

Como teria sido produzida esta joia tão preciosa, uma peça literária de poesia como nenhuma outra, que traz em tantos versos uma história tão dramática, que dá detalhes coerentes de realidade para um caso fenomenal que aconteceu na vida de um homem que era fiel servo do Deus Vivo?

O prólogo (capítulos 1 e 2) e o epílogo (capítulo 42) têm toda a aparência de que foram inseridos depois da escrita dos versos poéticos, de forma a nos introduzirem e nos colocarem cientes da realidade dos fatos ocorridos, dentro do contexto em que essa longa poesia fora escrita. O termo de “homem…do Oriente” (1:3 e 18:20) sugere que quem escreveu essa forma final também viveu nessa mesma região.

Esse livro pode ser dividido de diversas maneiras, em partes unívocas, mas para simplificarmos essa divisão, nos atemos apenas ao prólogo, onde uma desafio diabólico é proposto e aceito por Deus; a seguir vêm os ciclos de debates entre Jó e seus amigos, seguidos da Revelação divina, e por fim, o epílogo.

QUANTO À DATA, não podemos precisar quando o livro foi escrito, bem como a dos sofrimentos pelos quais Jó passou, mas o conteúdo do livro nos leva a concluir algumas coisas, que passamos a enumerá-las abaixo:

1 – As riquezas sendo avaliadas em forma de gado do seu possuidor faziam parte da época patriarcal.

2 – a vida nômade dos sabeus e dos caldeus, que costumeiramente assaltavam a outros povos é notória no segundo século A.C. (Jó 1:17)

3 – a menção do dinheiro apresentado na forma de “peças” (Hebr: qesitah, que também pode ser traduzido por “ovelha”), conforme Jó 42:11, é característica dos tempos de Abraão, de José (Gênesis 23:15-16 e 37:28), e temos de considerar que esse termo aparece na Bíblia somente em Gênesis 33:19 e Josué 24:32.

4 – Jó aparece como o sacerdote de si mesmo e de sua família (1:5), assim como foi Abraão.

5 – A longevidade de Jó só aparece nos casos dos tempos dos patriarcas. Compare-se com o tempo de vida de Abraão e Isaque (Gên. 25:8 e 35:28).

6 – No livro todo de Jó, referem-se a Deus conferindo- Lhe o nome “El-Shadday”, em vez de Yaweh em muitas das vezes (doze vezes Yaweh X 31 vezes El-Shadday). Isto leva o caso para período anterior ao Êxodo. Como Yaweh é assim chamado por cinco vezes no capítulo 42, e uma vez no capítulo 1º, presume-se que houve influência israelita nas partes inicial e final da obra. Há quem presuma que Moisés teria traduzido o livro do aramaico ou outra língua, talvez um dialeto árabe setentrional, para o hebraico.

7 – A versão grega Septuaginta (LXX) do Antigo Testamento identifica Jó com Jobabe, o segundo rei de Edom (Gênesis 36:33).

A razão porque um livro tão antigo não ter feito parte do Pentateuco, é que o mesmo não tem conteúdo mosaico, e nem menciona a Revelação da Lei no deserto da arábia, do monte Sinai. Moisés até poderia tê-lo nas mãos, se lhe fosse contemporâneo, mas pelos fatos nele narrados tratarem do “homem… do Oriente”, e não da linhagem dos filhos de Jacó – note-se que não há menção de nenhuma genealogia de Jó – o livro bem pode ter sido guardado à parte, até que despontou um período poético, quando surgiram outros livros do estilo ao lado dos Salmos de Davi, Coré e Asafe, oportunidade em que deu ensejo para que estes fossem aceitos para dentro do Cânon Sagrado.

O AUTOR dessa obra admirável até hoje é desconhecido. O Talmude apenas sugere que o escritor deve ter sido alguém que vivia antes da época de Moisés. O texto não sugere absolutamente nada que nos identifique quem foi o escritor do livro. Pelos nomes dos amigos de Jó, depreende-se que Elifaz era de Temã, localidade bem conhecida do território de Edom; Eliú era buzita, povo que viveu perto dos caldeus no nordeste da Arábia. Assim, deve-se atribuir o cenário da história no norte da Arábia, perto de Edom.

Pelo simples fato de que os dois primeiros e o último capítulo terem sido escritos em prosa, e que no capítulo 42 estar relatada a morte de Jó, isso nos dá uma certa segurança ao dizer que os capítulos que estão escritos em poesia são obra de mãos diferentes.

Essa diferença no estilo entre as partes do início, do meio e do fim nos leva a pensar como teria sido produzida esta obra. Sabemos que os Salmos foram escritos por diversos autores, mas em ocasiões diferentes, cujos textos não são muito longos, com exceção do Salmo 119. Provérbios e Eclesiastes também não foram produzidos, nos respectivos originais, de uma só feita. Os capítulos 3 a 41 de Jó, porém, isto é, esses trinta e oito capítulos, contêm diversos discursos de Jó, Elifaz, Bildade, Zofar, Eliú e Deus, escritos em estilo poético. Difícil crer que tenham assumido essa forma desde o momento em que foram produzidos. Tais diálogos originais provavelmente foram mantidos em prosa, devido à pressão pela qual o sofrimento do personagem principal estava passando, pois que não era ocasião para alguém fazer demonstrações de dotes literários, para falarem de modo artístico, como quem estaria produzindo uma peça teatral. Eram momentos de grande dor física, acompanhados de profunda dor na alma. As exposições dos que emitiram seus pontos de vista foram tão marcantes, que deixaram fortes impressões nos seus ouvintes, de modo inesquecível a todos os presentes.

Devemos considerar, de outro lado, que a poesia hebraica não se prende a métricas de sílabas ou letras, e nem a rimas, mas apenas a rítmicas acentuações fonéticas das palavras, de modo um pouco mais fácil de ser produzida por repentistas.

Então vem a questão: Jó, Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú, eram todos eles poetas repentistas, de modo a produzirem todo esse texto imediatamente, na forma como o temos hoje? Então o seu encontro e os seus diálogos se deram entre membros repentistas de uma Academia de Letras, da terra de Uz? Isto não é muito provável e nem razoável. Mais facilmente os discursos de todos estes e também a fala divina ocorreram em prosa, e depois, não muito tempo após a restauração de Jó, sofreram uma transformação para poesia pela pena de um indivíduo que, bastante interessado por essa história, mostrou todo o seu talento de escritor em esses 38 capítulos, e isto em uma outra língua que não o hebraico. A forma hebraica do texto veio a surgir depois, traduzida por algum israelita.

UM PROBLEMA DE INSPIRAÇÃO:

Um outro problema surge, que é o da inspiração divina. Se o texto hebraico em formato poético não é o original, então as palavras usadas na escrita não seriam exatamente as mesmas que fluíram nos diálogos. Logo, qual o valor espiritual do livro, se até mesmo as palavras de Deus tivessem sido passadas da prosa para a poesia?

Quanto a este detalhe, diremos que também as traduções do restante da Bíblia para outras línguas deixariam a desejar no tocante à plena força da inspiração, mas não podemos descartá-las, porque tratam de relatos históricos, usam as palavras que Deus mesmo proferiu, e isto é de suma importância para todo ser humano que as pode receber inteligivelmente, pois tratam das relações entre os homens e Deus. Temos que ouvi-las, entendê-las e aplicá-las em nosso viver, pois trazem-nos lições que não podemos perdê-las, sob o perigo de graves prejuízos. Quando Jesus ordenou aos Seus discípulos: “Ide por todo o mundo, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”(Mat. 28:19), eles teriam que fazer uso de traduções, a fim de poderem ser entendidos, pois o resto do mundo, cada qual em sua língua, teriam que sabê-lo.

Assim, diremos que as palavras dos diálogos escritos em Jó o foram em conformidade com a relativa inspiração de tradução. Contudo, ainda há que se ressaltar que as palavras dos amigos de Jó não foram do agrado de Deus, às vezes até se parecendo com as palavras do diabo, e até mesmo as de Jó sofreram reprovação da parte do Senhor – portanto, não representam, no totum, a vontade de Deus, mas servem como veículos intermediários, nos quais uma dialética se desenvolve progressivamente até culminar com um fim esclarecedor, o que aconteceu quando Deus deu o Seu parecer.

QUANTO À PERMISSÃO DE DEUS NO SOFRIMENTO DE JÓ:

O poeta abolicionista brasileiro Castro Alves, sentindo em sua alma uma parte do penar dos escravos que foram trazidos da África para o Brasil através dos navios negreiros, ele deixou uma exclamação de desespero em certo momento em que escreveu:

  • Deus! Ó Deus! onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito …

(da obra: Navio Negreiro, 1870)

É este o tipo do brado que retrata o espírito do homem Jó, ao ter de encarar uma amargura após outra, como nunca na sua vida. Não aderimos a esse impulso, não o incentivamos e nem aprovamos tal ousadia, mas ao mesmo tempo não podemos deixar de sentir que o desespero leva os homens a falar coisas que fogem à sensatez, e dar-lhes um desconto, minimizando-lhes os efeitos negativos, sensibilizados. Cremos que Deus também acharia correto este posicionamento.

Isso é algo que ninguém que está de fora da situação, assistindo a dor alheia como que de camarote, teria licença divina para emitir seus julgamentos de forma pessoal e precipitada.

Jó não está fora do problema. Ele é quem o sente na própria carne, e também no seu espírito. Humilde, ele se submete, mas não deixa de reclamar enquanto a dor lhe aperta, em um instintivo clamor, desejoso de que a justiça divina interceda em seu favor.

A principal razão por que existe o ateísmo é o problema do sofrimento, que leva os adeptos dos que fogem da existência de Deus a argumentar que um Deus de amor não permitiria haver tanta dor neste mundo. Na verdade, esta reação tem sido muito movida por expressões de indignação, ou de discordância com o Deus que parece não ver, e acham que Ele teria que Se mostrar, detonar os maus e recompensar os bons, para então ser adorado e temido. Contrariando a essa filosofia, na história de Jó Deus realmente aparece, e dá um desfecho moral satisfatório à questão.

O livro de Jó traz à baila um tema universal. Um questionamento tão universal que as mesmas perguntas que hoje são feitas pelos que sofrem e pelos que testemunham os sofrimentos humanos, feitas há cerca de quatro mil anos atrás, ainda são atuais.

A poesia dos capítulos 3 a 41 é repleta de paralelismos, coisa comum nos escritos poéticos da Bíblia, mas no Livro de Jó os termos usados até dificultam a interpretação do texto, visto que apresenta 110 palavras que não são usadas em nenhum outro livro bíblico.

Tamanha dificuldade é o que pode ter feito com que a Septuaginta (LXX) deixasse de traduzi-lo integralmente, pois que omitiram a tradução de 17 a 25% do livro, provavelmente vencidos pelos obstáculos oferecidos por esses termos não muito usuais. Isto, entretanto, só fortalece a tese da antiguidade da obra original, e da sua fonte estrangeira dos acontecimentos e versos escritos.

Interessante notar que o livro não dá uma notória ênfase à resposta divina para as cogitações humanas quanto ao sofrimento; antes, mostra quão finita e limitada a mente dos homens, incapaz de decodificar filosoficamente a razão e a origem de tal tema.

A conclusão para esse questionamento vem a corroborar com a tese de que há coisas neste mundo que não estão ao alcance da nossa compreensão, pois que estas pertencem ao estrito domínio da mente de Deus, e só a Ele pertence o comentar, classificar e controlar os fatos, os mais intrigantes.


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